Eu não escrevo porque. Eu não escrevo enquanto, enquanto não encontro, na vida, um ponto e vírgula. Não escrevo uma crônica entre vírgulas, muito raro. É preciso um porto, uma mínima âncora que garanta que o balançar do barco é passageiro, que o movimento ao menos, tende à pausa. Mesmo a curta pausa do ponto e virgula.
Talvez não apenas para quem perdeu muito tempo na vida, para quem esbanjou essa moeda restrita, hoje vivo de forma positivamente intensa. Ou de uma maneira intensamente positiva, o que dá quase no mesmo e ainda acresce algumas interpretações favoráveis. O ônibus parado, mesmo com o motor ligado, dá a partida para uma crônica. Se ela saísse sempre inteira, num jato, era fácil. Mas não é assim. As palavras empedram dentro quando estanca o fluxo de saída. Quando fecho as portas do delírio em nome do presente sempre, sempre urgente.
Busco a pausa. Minto. Não busco a pausa. Anseio para que ela venha de forma natural e me pegue, informal e disponível. Momento quase impossível. Se estou vigilante para dentro, corro a caçar, no laço, o pensamento: busco a caneta, o papel, o teclado, a memória da frase primal que abre o grito do texto no vazio urbano. Vazio urbano cheio. Multidões. Pessoas em quase todos os cantos. Multidão de pensamentos.
(Quem gosta de números – e há quem saiba até lidar com eles – talvez pudesse estimar o número de pensamentos possíveis em um aglomerado de pessoas em situações diferentes. Ou, melhor, por metro quadrado: em comício de políticos brasileiros, média de dois pensamentos por pessoa: mentiroso e sem nenhuma vergonha, por exemplo. Em um show de rock, média de meio pensamento a cada quatro pessoas, o que parece bom. Não me atrevo aos totais, esses são números para profissionais.)
Ela fechou a janela, ufa, consigo pensar novamente. É preciso salpicar vírgulas no texto apropriadamente. Eu salpico, tentando acertar. Estou até pensando em estudar. As pessoas tremem com as vírgulas, é senso comum. Hoje em dia, eu diria que, na dúvida, as pessoas comem as vírgulas. Economizam. Eu vivo a vida entre uma vírgula e outra, entre uma vírgula e outra, às vezes, quando posso, lanço um traço e pronto. Tenho tempo para um abraço. Ponto. Volto às vírgulas, volto a viver entre uma e outra, entre um telefonema e o conserto do carro, entre uma saudade e um encontro rápido, adiado, porque. Eu não escrevo, porque.
Acredito que, agora, a essa altura do texto, consegui me explicar bem. Embora, honestamente, que salada, hein? Como é que você escreve assim, pergunto para mim? Sofrendo, respondo – sei a resposta. Sangrando durante anos. Desde que alcancei o topo do muro da infância e meu olhar virgem encarou o mundo. A inocência ficou para trás e eu demorei a encontrar o que colocar no lugar. Mas já não posso me queixar, demorei, mas encontrei o caminho de onde quero estar.
Fiz uma visita rápida, ontem, a amigos que nem sempre vejo. Eles gostam de literatura. Eles lêem O Prazer do Texto e A História das Vírgulas – algo assim. São livros finos, que também quero pra mim, assim que a vida dobrar na próxima esquina. Conversamos sobre pontuação, meu tema favorito em escrituras. (Tem gente que gosta de frituras, eu não sou chegada à cozinha.) Minha amiga, que gosta de cozinhar, me falou de sujeito e predicado. Eu não escrevo porque sujeito e predicado, disse. Eu escrevo porque, Rosita!
… dorme, a meu lado, meu passado. Uma garota de vinte, o jeito despojadamente construído, a juventude da pele, o cabelo, as roupas, o que mostram e o que escondem. Aquele casaco de pelo de lhama, eu tinha igual. Era mais colorido e bonito igual. Segue seu rumo serrano o ônibus em movimento e a paisagem lá fora é simples, é a mesma, é pobre, é o Brasiu, e é bonita…
Oi Márcia! Que texto bacana!(com exclamação) Reserve + pausas p/ nos brindar. Bjks!
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Fofa!!! Obrigada pelo estímulo! Beijos
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Eu amei sua escrita. Não deixe de nos presentear sempre!! Bj grande
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Marcinha, você sempre nos surpreende com as palavras vindas do coração. E elas, vão nos permeando, permeando e carinhosamente habitam pra sempre.
bj, querida.
Lourdes
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